junho 24, 2010


(como quem continua a contagem de um conto)

O carrasco era um homem bom que cometia os actos maus de todos os outros e calava-se. Tinha herdado esse mester de seu pai e não recusara a sua sorte, alguém tinha de fazer o trabalho sujo, e antes ele que o fazia sem maldade no coração do que outro que o fizesse por paixão.
Era afinal um talhante com um avental branco onde todas as mãos do mundo vinham limpar o sangue.
E, no final do dia, cansado e indisposto com o cheiro a podridão impregnado na pele, querendo repousar o corpo noutro corpo, as aldeias iam surgindo desertas, nenhuma mulher lhe abria a porta ou sequer espreitava à janela quando ele passava. Lavava-se nos rios, dormia ao relento e abraçava-se ao tronco das árvores quando lhe acudia um desejo imenso. 
Seu pai tentara ensinar-lhe a arte da dissimulação para que alguma mulher lhe pegasse. Sua mãe, até morrer, julgara estar casada com um caixeiro-viajante, tal era a indumentária que trajava e as mercadorias que lhe trazia de terras distantes. Nunca tivera coragem de confessar o logro. Mas com o filho era diferente, ele teria de ocupar o seu lugar quando a morte chegasse ou perdesse força para o trabalho braçal. Quando completou dezasseis anos levo-o consigo numa das longas viagens e mostrou-lhe tudo. Tudo até à agonia final. Porque se algum indício de náusea emergisse era o sinal de que não estava talhado para o lugar. Mas ele não o decepcionara. E então, durante os anos que se seguiram, transmitiu-lhe toda a sua arte, com a minúcia e a disciplina de quem transmite um ensinamento milenar. Tinha orgulho na forma, não no acto, porque esse não é de nossa conta, dizia sem qualquer sarcasmo. Só assim, acrescentava, conseguia continuar a olhar para as mãos suadas sem chorar.
Mas ele tinha feito uma jura no dia em que seu pai lhe passara o testemunho; tinha-se ajoelhado em frente à imagem de sua mãe e tinha-lhe dito que o segredo escondido naquela casa envolta em névoa iria ser revelado à primeira mulher que dele se aproximasse; fazendo jus a toda a estirpe de mulheres que ali habitara desde os tempos mais remotos. Era uma mancha que estava ao seu alcance apagar, talvez a única, embora lhe pudesse custar a descendência. O fim daquela linhagem de carrascos. Mas nem isso, nem o desejo imenso o impediram de avançar.
Seu pai tinha-o preparado o melhor que sabia para as provas mais difíceis que iria ter de ultrapassar, o olhar da ovelha emudecida nas mãos do tosquiador; o olhar de um velho monge meditador; o olhar de um infante a quem lhe arrancaram à força a teta de sua mãe; o olhar de Cassandra, de Antígona, de Joana, de Anne. Mas a mensagem daquele olhar enterrado nos seus orifícios oculares transportava um novo enigma que ele não era capaz de decifrar. Era a potência máxima do perdão a operar dentro de si. Um olhar sem julgamento, que mecanicamente revirava os seus olhos para dentro, levando-o a contemplar a vastidão interior. Esse espaço em que se encontra a caverna onde estão guardadas todas as cantigas de embalar do mundo e onde é possível, finalmente, repousar. Pela primeira vez um supliciado seu não lhe suplicava a vida. Pelo contrário, o olhar dela dizia-lhe para não temer e avançar; pedia-lhe para confiar no destino que se lhe apresentava; dizia-lhe que não queria ser libertada porque só ela tinha a capacidade de se libertar. Mas, quebrando todas as regras, ele substituiu-se-lhe no momento final colocando-lhe sobre a face a sua máscara de pele de boi e encapuçando-se com o saco de sarapilheira. Seguiu-se um só andamento. Ascendente. Foi uma morte limpa, disseram as gentes que assistiram, sem perdas de urina ou fezes.
Nove meses depois, a muitos quilómetros dali, nascia uma menina a quem a mãe deu o nome de Lissandra, a que liberta. 
Lissandra nascera com um dote especial para a tecelagem. Como sua mãe, sua avó materna e toda a linhagem de mulheres anteriores a elas.


(este conto foi escrito um tempo depois de ter lido o conto "O Carrasco" de Sophia de Mello Breyner Anderson, publicado no nº 5 da revista "As escadas não têm degraus" (Editora Cotovia); diz-se aí que o conto é a primeira parte de um projecto de conto maior que ficou por concluir; a verdade é que depois de o ler a figura deste homem, o carrasco, nunca mais me abandonou e senti um impulso para continuar o seu percurso)

2 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

haja conto para nos contarem a vida!

abraço terno!

mp disse...

um abraço para ti também!

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