novembro 16, 2011


No dia anterior tinhamos ido assistir a uma cerimónia de candomblé no bairro do Lobato, um bairro pobre da Bahía, mas rico em gente; chegamos de noite, na companhia de Luís, o nosso guia por umas horas; o interior do bairro é escuro, ruas estreitas de terra batida serpenteiam-no, ladeadas por casas de construção simples, inacabadas, tijolo à vista e grades nas portas e janelas; cheiros intensos, mistura de ar quente e húmido com comida, lixo e lodo (o bairro fica nas margens do oceano, numa região de mar que foi aterrada); os nossos sentidos são assaltados a todo o minuto; Luís descansa-nos dizendo que é um bairro de famílias, que não costuma haver problemas de violência; e as famílias estão à vista, no interior das casas, na rua, nos botecos; crianças de vários tamanhos brincam por todo o lado, correm, gritam; aos poucos vamo-nos habituando à diferença e ficando mais à vontade; Luís explica-nos que este lugar ficou célebre por ter sido aqui que foi descoberto o primeiro poço de petróleo do Brasil, em 1939; não era por acaso que a água desse tempo não se bebia, mas dava para acender candeeiros a óleo; finalmente chegamos ao terreiro, um anexo de uma casa do bairro, com porta para a rua e duas janelas; uma sala rectangular com chão de cimento não afagado, paredes brancas de reboco; ao fundo a cadeira do babalorixá (pai de santo) e por detrás os instrumentos de percussão, três tambores sagrados, todos diferentes, cujos músicos vão-se revezando ao longo da noite; entre eles um pai e um filho de 12 anos; o miúdo era lindo a tocar, muito sério e compenetrado; de cada lado um banco corrido separa ao meio homens e mulheres; enquanto não começa, Luís conta-nos que já foi professor de inglês e que agora é guia turístico; já levou muitos turistas a cerimónias destas, mas neste bairro é a primeira vez que vem; explica-nos a religião, diz-nos que também é devoto, mas pertence a outra casa; pelo meio fala-nos de livros, a sua paixão, conta-nos que leu quase todo o Eça; que tem uma edição muito antiga, encadernada a pele, de alguns dos seus livros reunidos; este livro foi-lhe oferecido por um aluno, dizendo que o iam jogar fora; quando ele leu 1926 nunca mais o largou; esta casa é patriarcal, o líder é um pai de santo; na Bahía a maior parte das casas é liderada por uma mãe de santo, as mais antigas pelo menos; por isso lhe chamam a cidade das mulheres; mas com o tempo os homens foram também abrindo as suas casas; quando chegámos fomos recebidos por um homem alto e forte, vestido com panos coloridos de verde no corpo e na cabeça e colares ao peito; penso ser ele, mas depois percebo que não, é mais um filho de santo; o pai de santo é um homem baixo, magro, pele mestiça, face afilada, olhar penetrante, vestido com panos de tons azuis, vários colares largos ao pescoço; cada cor representa um orixá ou divindade; Luís explica-nos que ele teve de organizar esta cerimónia para celebrar os seus 21 anos de devoção; e que a cerimónia é em honra de Ogun, o orixá guerreiro e implacável, senhor do ferro;  a cerimónia começa quando a sala já está quase cheia; quem não cabe tem de ficar a assistir do lado de fora; as janelas e a porta ficam cheias de caras e corpos espreitando; um cão rafeiro e muito maltratado passa por entre as pernas e deita-se aos pés de um senhor mais idoso; há muitos cães abandonados vagueando pelas ruas de Salvador; assim como crianças, moleques como ali lhes chamam; são sempre eles os que mais sofrem numa sociedade com graves problemas sociais, os elementos mais frágeis; a cerimonia começa; batuques, danças e cânticos; algumas mulheres e homens têm o direito de acompanhar o pai no centro da sala, dançando em círculo; imagino que sejam os mais importantes na hierárquia da casa; a minha atenção prende-se nas mulheres, as mais idosas do grupo; nas suas faces marcadas e dóceis ao mesmo tempo; nos cabelos brancos que se adivinham por debaixo do pano que os envolve; os seus vestidos são bonitos, coloridos ou todos brancos, rendados; elas transmitem força, dignidade e respeito; vê-se que são matriarcas de muita daquela gente; avós de santo, diria eu; as danças são interrompidas muitas vezes para cumprimentarem o pai; consoante a idade, agacham-se, deitam-se ao comprido no chão e esperam a sua benção; uma, outra  e outra vez; e no meio há o beija mão redobrado, eu beijo a tua e tu a minha; muitas e muitas vezes; entre filhos e entre filhos e pai; fico impressionada com a reverência das saudações; é o respeito pelo outro; o reconhecimento; a estima; intervalo; param os batuques os cânticos e as danças; saimos todos e ao relento é-nos oferecido um copo de guaraná e bolinhos caseiros; as minhas papilas gustativas estão curiosas, não conseguem reconhecer nenhum daqueles sabores; eles usam farinhas que nós aqui não usamos, mandioca, tapioca, milho...; quando a cerimónia recomeça o pai de santo  traz um sabre comprido e quando os tambores se agitam enchendo o ar de som ele encena uma dança de guerreiro, enérgica, empunhando o sabre, rodando-o no ar e riscando o chão até soltar faísca; parece tomado; as feições endurecem-se e o olhar é pétreo; fico um bocado assustada; e como o cansaço chega em força, resolvemos regressar ao pelourinho abandonando a cerimónia a meio; não sei quantas horas mais terá durado; no total muitas mais do que as nossas cerimónias católicas; mas a música é outra e ajuda. 

Hoje é domingo, às 10 horas há missa na paróquia do Rosário dos Pretos; como a Igreja está fechada para obras de recuperação a missa é acolhida na Igreja da Nossa Senhora do Carmo, no morro em frente ao pelourinho; chegamos lá e percebemos que temos de esperar, não há hora certa para começar, espera-se a chegada vagarosa dos poucos paroquianos; Jorge, o guia muito sabedor da "Catedral Basílica" tinha-nos avisado que na Bahía havia neste momento uma grande falta de fiéis; com a aceitação oficial do candomblé nos anos setenta, a Igreja Católica foi perdendo os seus crentes para esta religião e para as Igrejas Universais do Reino de Deus que entretanto foram surgindo; não se vê gente nova, a média de idade é alta; o Padre é talvez dos mais novos; aqui a música também está presente, há muitos cânticos, mas sem acompanhamento instrumental, que faz falta; e a gestualidade é muito mais constante e  espontânea do que na Europa; há uma alegria que percorre toda esta gente e que passa para os seus cultos;  e a música é a grande culpada; a música e a linguagem corporal que a acompanha; é impossível ficar quieto e triste por muito tempo.







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