dezembro 30, 2011



de vez em quando é preciso voltar a Rilke...


(...) É preciso acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as pessoas pensam, sentimentos (esses têm-se bastante cedo), são experiências. Por amor de um verso tem que se ver muitas cidades, homens e coisas, tem que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos e regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, - em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual à outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas. (...)
(Rilke, Cadernos de Malte Laurids Brigge)




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