janeiro 01, 2012



de vez em quando é preciso voltar a Stig Dagerman...



O que é do mar se os rios se recusam?

Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma. Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Porque me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas porque me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.
Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autónomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.(…)
A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine.
É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que se possa resolver dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.



(Stig Dagerman, “A Nossa Necessidade de Consolo é impossível de Satisfazer", Ed. Fenda)

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O homem que está apaixonado

O homem que está apaixonado encontra um búzio na margem. Quando o leva ao ouvido, não ouve o mar, nem o vento, nem os anjos, mas só a sua própria voz cantando: Amo-te. Nunca ouvira nada tão belo.
Na outra margem todos os homens dormem. Alguém caminha lentamente ao longo da praia, leva-os um a um ao ouvido, escuta. Nalguns desses búzios humanos ouve cães a ladrar, noutros tigres rugir na imensidão ou então martelos a ressoar, e noutros ainda crescer o crescer das máquinas. Mas num deles ouve ecoar o grito de um peixe. É o som que faz o homem que está apaixonado quando alguém o leva ao ouvido.
Se os planetas pudessem amar, deixariam a sua órbita e provocariam o caos. A salvação do mundo deve-se ao facto de o amor ser impossível. O homem que está apaixonado adivinha, também ele sabe, que o amor é gémeo da morte. Mas isso não o impede, a ele que é prisioneiro do seu destino, de entrar de rompante na cela do seu vizinho gritando de alegria: Sou livre!

(Stig Dagerman, Publicação póstuma, 1955)


(obrigada a N por me ter recuperado estas palavras do Stig Dagerman)






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