Contaram com eles
Para José Bação Leal, onde quer que esteja…
Na
cidade de Nampula havia um homem que aí fora parar por força de ordens
superiores. Esse homem não preparara a viagem com antecedência. Não comprara um
guia com o substantivo próprio “Nampula” na capa. Não se dirigira a uma agência
com aquela nem nenhuma outra felicidade fácil de quem procura um destino de
férias. Um dia chamaram-no. Por escrito. Uma carta registada com aviso de
recepção. A letra negra e encarnada, como que adivinhando. Contamos consigo.
Dizia no final, antes da assinatura indecifrável do (ir)responsável. Como aliás
acontece com todas as que colmatam assuntos que se julgam mais importantes que
homens. Assuntos que valem homens. Assuntos-homens. A guerra é um deles. Este
homem leu a carta e não estranhou. Todos os seus amigos já tinham recebido uma
igual. Sabia que mais cedo ou mais tarde seria com ele que contariam. Ele que
até nem percebia muito de contas. Era um homem de letras. Num mundo dividido
entre letras e números. Havendo ainda quem os misture julgando que assim a
formula será mais completa. Mas agora tudo isto não interessa. O homem abriu a
mala. Uma mala grande e preta que pertencia a seu Pai. Não tinha o hábito das
viagens. Pensou durante algum tempo naquilo que mais falta lhe faria porque o
espaço era limitado. Optou pelos companheiros de mesinha de cabeceira, desdenhando o tecido talhado. Uma opção correcta para um destino em que tudo é
de tal forma talhado à medida de outro que a mais leve tentativa de contrariar seria
imediatamente punida. E contrariar por contrariar que fossem eles. Bastião da
contradição. Olhou demoradamente para as prateleiras. Lombadas. Alguns
retirou-os do lugar para mirar as capas. Outros, ainda, foram abertos ao acaso.
Para que do interior surgisse uma pista. E um a um foi-os aconchegando no seu
interior, compondo a bagagem. Literária. Os que iriam ser abandonados pareciam
encolher-se de dor, como que adivinhando o seu destino de criança esquecida num
orfanato. Perdoem-lhe a analogia, mas ainda era muito novo e o mais próximo de
um sentimento de paternidade era por eles que nutria. Dos eleitos havia poesia
e romance na língua pátria ou nela reconvertida. Ensaios vários, prevalecendo o
cinema como tema. Uma miscelânea da qual se viria a arrepender. Pelo espaço mal
aproveitado. Mas as escolhas são mesmo assim. Nunca se acerta. Nem mesmo à
primeira. O homem fechou a mala. Colocou o casaco. Mais por hábito do que por
necessidade, sabendo que o esperava um clima quente. Muito quente. Mais ainda do
que na estação estival do seu Alentejo profundo. Nascido em Mourão. E
despediu-se da família. Mãe. Pai. Irmã. Amigos. E de todos aqueles que se iam
cruzando no seu caminho, até aí sem destino marcado. Adeus.
E o homem partiu.
Até
aqui suficientemente fluido. A partir daqui.
Eram
seis horas e cinquenta e sete minutos quando se apresentou na morada indicada
na carta. Até a manhã é violentada por estes
assuntos-homens. Mas este não foi um pensamento dele, mas meu, que de fora o
olho e sou, por isso, muito mais embirrenta e coca-bichinhos. Ele, felizmente,
ainda é suficientemente fluido. Disse o nome. Os cinco de uma vez a contar com
o próprio. E, em troca, recebeu um número. Baixou os olhos e engoliu saliva
sentindo-se, pela primeira vez, enganado no troco. No intuito de fazer graça
com a desgraça, esse número iria mudar algumas vezes daí para a frente. Motivo
aliás de inúmeros extravios de correspondência que, também eles, só
beneficiavam a chacota. Vozes de mães, pais, mulheres e filhos acabavam
declamadas em voz alta para todo um regimento, que inventava gracejos e entoava
risadas para não ceder às lágrimas a que o destinatário não se furtaria. Afinal,
rir é muitas vezes o remédio dos tristes. Havia-as para todos os géneros e
feitios, embora muitas seguissem cânones tão apertados de dever-ser que mais
pareciam fornada de pão industrial. As cartas, como as pessoas, não se deviam
repetir. Mas o pior, o pior mesmo, eram as mães que imploravam aos filhos: “Não
mates. Não peques. Não cortes. Ama o teu irmão. Lembra-te da cruz”. A estas,
mesmo quando lidas em voz alta, não se seguiam motejos, mas cólicas intestinais
tão fortes que entupiam as latrinas improvisadas dos arraiais, quando as havia.
O
homem seguia os dias sempre de cabeça baixa. Obedecendo a ordens. Sem ter de
tomar decisões. Tudo lhe era ditado de fora. A hora de levantar, a hora de
deitar, o que iria comer durante o dia e as horas a que o faria, cada
movimento, cada passo, nada era deixado ao acaso. Nem mesmo a evacuação. Para
ler ou escrever a amigos e familiares tinha de roubar horas ao sono e suportar
olhares de desconfiança de camaradas e superiores, e várias vezes viria a ser
punido por tal. A correspondência e a leitura foram aos poucos e poucos
ganhando estatuto de amor proibido. Eram as suas fiéis companheiras, e o que
lhe davam permitia-lhe suportar o peso dos dias. Nas cartas, contava dos livros
que andava a ler, fazia recomendações de revistas e filmes. Falava destes como
se tivesse acabado de sair de uma sala de cinema na capital. Tinha atenções especiais para
cada amigo. Palavras carinhosas. E requisitava sempre mais e mais leituras.
Agora só poesia e cinema. Eram os eleitos. Para histórias bastava-lhe a sua que
ia sendo escrita por outros. Com a poesia elevava pela primeira vez e única
no dia a cabeça aos céus. Com o cinema, viajava pelo mundo, esquecendo Nampula
no mapa.
Tinta branca em mancha preta. De início ocupando quase toda a folha e
pouco a pouco deixando-se diluir até que do branco nem réstia. Suficientemente
estático. O homem deixou de ler. Deixou de escrever.
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