março 02, 2013











Contaram com eles


Para José Bação Leal, onde quer que esteja…


Na cidade de Nampula havia um homem que aí fora parar por força de ordens superiores. Esse homem não preparara a viagem com antecedência. Não comprara um guia com o substantivo próprio “Nampula” na capa. Não se dirigira a uma agência com aquela nem nenhuma outra felicidade fácil de quem procura um destino de férias. Um dia chamaram-no. Por escrito. Uma carta registada com aviso de recepção. A letra negra e encarnada, como que adivinhando. Contamos consigo. Dizia no final, antes da assinatura indecifrável do (ir)responsável. Como aliás acontece com todas as que colmatam assuntos que se julgam mais importantes que homens. Assuntos que valem homens. Assuntos-homens. A guerra é um deles. Este homem leu a carta e não estranhou. Todos os seus amigos já tinham recebido uma igual. Sabia que mais cedo ou mais tarde seria com ele que contariam. Ele que até nem percebia muito de contas. Era um homem de letras. Num mundo dividido entre letras e números. Havendo ainda quem os misture julgando que assim a formula será mais completa. Mas agora tudo isto não interessa. O homem abriu a mala. Uma mala grande e preta que pertencia a seu Pai. Não tinha o hábito das viagens. Pensou durante algum tempo naquilo que mais falta lhe faria porque o espaço era limitado. Optou pelos companheiros de mesinha de cabeceira, desdenhando o tecido talhado. Uma opção correcta para um destino em que tudo é de tal forma talhado à medida de outro que a mais leve tentativa de contrariar seria imediatamente punida. E contrariar por contrariar que fossem eles. Bastião da contradição. Olhou demoradamente para as prateleiras. Lombadas. Alguns retirou-os do lugar para mirar as capas. Outros, ainda, foram abertos ao acaso. Para que do interior surgisse uma pista. E um a um foi-os aconchegando no seu interior, compondo a bagagem. Literária. Os que iriam ser abandonados pareciam encolher-se de dor, como que adivinhando o seu destino de criança esquecida num orfanato. Perdoem-lhe a analogia, mas ainda era muito novo e o mais próximo de um sentimento de paternidade era por eles que nutria. Dos eleitos havia poesia e romance na língua pátria ou nela reconvertida. Ensaios vários,  prevalecendo o cinema como tema. Uma miscelânea da qual se viria a arrepender. Pelo espaço mal aproveitado. Mas as escolhas são mesmo assim. Nunca se acerta. Nem mesmo à primeira. O homem fechou a mala. Colocou o casaco. Mais por hábito do que por necessidade, sabendo que o esperava um clima quente. Muito quente. Mais ainda do que na estação estival do seu Alentejo profundo. Nascido em Mourão. E despediu-se da família. Mãe. Pai. Irmã. Amigos. E de todos aqueles que se iam cruzando no seu caminho, até aí sem destino marcado. Adeus. E o homem partiu.
Até aqui suficientemente fluido. A partir daqui.
Eram seis horas e cinquenta e sete minutos quando se apresentou na morada indicada na carta. Até a manhã é violentada por estes assuntos-homens. Mas este não foi um pensamento dele, mas meu, que de fora o olho e sou, por isso, muito mais embirrenta e coca-bichinhos. Ele, felizmente, ainda é suficientemente fluido. Disse o nome. Os cinco de uma vez a contar com o próprio. E, em troca, recebeu um número. Baixou os olhos e engoliu saliva sentindo-se, pela primeira vez, enganado no troco. No intuito de fazer graça com a desgraça, esse número iria mudar algumas vezes daí para a frente. Motivo aliás de inúmeros extravios de correspondência que, também eles, só beneficiavam a chacota. Vozes de mães, pais, mulheres e filhos acabavam declamadas em voz alta para todo um regimento, que inventava gracejos e entoava risadas para não ceder às lágrimas a que o destinatário não se furtaria. Afinal, rir é muitas vezes o remédio dos tristes. Havia-as para todos os géneros e feitios, embora muitas seguissem cânones tão apertados de dever-ser que mais pareciam fornada de pão industrial. As cartas, como as pessoas, não se deviam repetir. Mas o pior, o pior mesmo, eram as mães que imploravam aos filhos: “Não mates. Não peques. Não cortes. Ama o teu irmão. Lembra-te da cruz”. A estas, mesmo quando lidas em voz alta, não se seguiam motejos, mas cólicas intestinais tão fortes que entupiam as latrinas improvisadas dos arraiais, quando as havia.
O homem seguia os dias sempre de cabeça baixa. Obedecendo a ordens. Sem ter de tomar decisões. Tudo lhe era ditado de fora. A hora de levantar, a hora de deitar, o que iria comer durante o dia e as horas a que o faria, cada movimento, cada passo, nada era deixado ao acaso. Nem mesmo a evacuação. Para ler ou escrever a amigos e familiares tinha de roubar horas ao sono e suportar olhares de desconfiança de camaradas e superiores, e várias vezes viria a ser punido por tal. A correspondência e a leitura foram aos poucos e poucos ganhando estatuto de amor proibido. Eram as suas fiéis companheiras, e o que lhe davam permitia-lhe suportar o peso dos dias. Nas cartas, contava dos livros que andava a ler, fazia recomendações de revistas e filmes. Falava destes como se tivesse acabado de sair de uma sala de cinema na capital. Tinha atenções especiais para cada amigo. Palavras carinhosas. E requisitava sempre mais e mais leituras. Agora só poesia e cinema. Eram os eleitos. Para histórias bastava-lhe a sua que ia sendo escrita por outros. Com a poesia elevava pela primeira vez e única no dia a cabeça aos céus. Com o cinema, viajava pelo mundo, esquecendo Nampula no mapa. 
Tinta branca em mancha preta. De início ocupando quase toda a folha e pouco a pouco deixando-se diluir até que do branco nem réstia. Suficientemente estático. O homem deixou de ler. Deixou de escrever.
       














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