outubro 28, 2014





para o meu pai





A caixa

Só sei entregar-me.
Andei no jardim infantil, depois na escola primária, fiz o ciclo e até cheguei à faculdade.
Mas ninguém me ensinou a despedir-me.
Mesmo quando me disseram que tu já te ias, comprei-te uns sapatos novos e trazia-os numa caixa para te dar quando te fui visitar ao Hospital e já não me deixaram entrar. Disseram-me que era melhor não te ver com o teu novo disfarce. Para guardar as recordações que tinha de ti. E eu aceitei. Não me despedi, nem te entreguei os sapatos.
Ficaram no meu armário até que os resolvi ofereçer. É fácil despedirmo-nos dos objectos. Eles não sofrem, pensamos nós. Não sentem a nossa falta. Para eles somos todos iguais (como devia ser para nós? Pergunto-te).

Restás-te-me neles, uma água de colónia paco rabanne, um tucano em vidro, um livro da Florbela Espanca com o canto de uma página dobrada no poema “Só”; um outro sobre buracos negros, que sempre me intrigou se o terás lido; os extractos do banco sublinhados e escritos à margem com a tua letra que me encatava, a tua assinatura que desde pequena tentava imitar sem sucesso.
O Boltanski ensinou-me a guardar esses objectos em caixas e eu resolvi guardá-los aqui. hoje. neste poema. em forma de caixa.

De tudo uma caixa, e a transbordar dela milhões de recordações molhadas porque carregadas de emoções.
Abro a caixa e pinto os olhos com o rimel dos teus cabelos negros, pinto a boca com o vermelho dos teus lábios, faço das tuas meninas dos olhos uns brincos
e conversamos no espelho invisível que nos separa.
Falamos da avó, dizes-me como ela está, manda muitos beijinhos para os netos e a benção, sempre a benção. Tu perguntas pelo Malia, o teu irmão mais novo e ficas feliz ao ouvires o que eu tenho para te contar, e perguntas pelos manos, o Tó, o João, o Álvaro e depois o Francisco, que tu já não conheceste, mas que um bocadinho de ti acordou nele.
Por fim, despeço-me retirando-te com um algodão embebido em óleo de amêndoas doces, macio como os beijos que me davas ao deitar, quando era de noite. quando era de noite, mas a noite ainda não te pertencia.







3 comentários:

ars disse...

Ao abrir esta caixa caiu-me uma lágrima de emoção. Que lindo!!

ars disse...

E um beijinho doce que já é noite :-)))

mp disse...

ars é uma caixa antiga que me apeteceu abrir. aqui. hoje. que bom estares aqui comigo a olhar para o seu interior. obrigada pela companhia e um beijinho na noite do dia :)

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