para o meu pai
A caixa
Só sei entregar-me.
Andei no jardim infantil, depois
na escola primária, fiz o ciclo e até cheguei à faculdade.
Mas ninguém me ensinou a
despedir-me.
Mesmo quando me disseram que tu já te ias, comprei-te uns
sapatos novos e trazia-os numa caixa para te dar quando te fui visitar ao
Hospital e já não me deixaram entrar. Disseram-me que era melhor não te ver com
o teu novo disfarce. Para guardar as recordações que tinha de ti. E eu aceitei.
Não me despedi, nem te entreguei os sapatos.
Ficaram no meu armário até que os
resolvi ofereçer. É fácil despedirmo-nos dos objectos. Eles não sofrem,
pensamos nós. Não sentem a nossa falta. Para eles somos todos iguais (como devia ser para nós? Pergunto-te).
Restás-te-me neles, uma água de
colónia paco rabanne, um tucano em vidro, um livro da Florbela Espanca com o canto de uma
página dobrada no poema “Só”; um outro sobre buracos negros, que sempre me
intrigou se o terás lido; os extractos do banco sublinhados e escritos à margem
com a tua letra que me encatava, a tua assinatura que desde pequena tentava
imitar sem sucesso.
O Boltanski ensinou-me a guardar
esses objectos em caixas e eu resolvi guardá-los aqui. hoje. neste poema. em
forma de caixa.
De tudo uma caixa, e a
transbordar dela milhões de recordações molhadas porque carregadas de emoções.
Abro a caixa e pinto os olhos com
o rimel dos teus cabelos negros, pinto a boca com o vermelho dos teus lábios,
faço das tuas meninas dos olhos uns brincos
e conversamos no espelho
invisível que nos separa.
Falamos da avó, dizes-me como ela
está, manda muitos beijinhos para os netos e a benção, sempre a benção. Tu
perguntas pelo Malia, o teu irmão mais novo e ficas feliz ao ouvires o que eu
tenho para te contar, e perguntas pelos manos, o Tó, o João, o Álvaro e depois o
Francisco, que tu já não conheceste, mas que um bocadinho de ti acordou nele.
Por fim, despeço-me retirando-te
com um algodão embebido em óleo de amêndoas doces, macio como os beijos que me davas
ao deitar, quando era de noite. quando era de noite, mas a noite ainda não te
pertencia.
3 comentários:
Ao abrir esta caixa caiu-me uma lágrima de emoção. Que lindo!!
E um beijinho doce que já é noite :-)))
ars é uma caixa antiga que me apeteceu abrir. aqui. hoje. que bom estares aqui comigo a olhar para o seu interior. obrigada pela companhia e um beijinho na noite do dia :)
Enviar um comentário