novembro 18, 2014




A Pedreira





Os Materiais
1.
Escuta bem, escuta as pancadas do martelo, a sua monótona cadência.
O ruído permite sentir por dentro a força, a intensidade das pancadas.
Escuta bem, a corrente elétrica corta um rio de pedra
e um pensamento vai tomando forma, dia após dia:
toda a grandeza do trabalho vem do interior do homem.
A mão calejada, gretada, afeiçoa-se ao martelo
e o pensamento, pelo contrário, dilui-se na pedra
quando a energia do homem se separa da sua força
que atinge, no lugar preciso, a artéria a sangrar.
Busca amor na ira, acesa em fogo,
que se instila no alento como rio pelo vento impelido,
quase embarga a voz, afetando as cordas vocais.
Os que passam dispersam-se pelo portão
e alguém murmura: no entanto, como era forte!
2.
Juntos se encontram os blocos de pedra, a corrente débil
não corta tão profundamente como o chicote invisível.
As pedras conhecem essa violência
quando um sopro intangível fende a sua máxima coesão
que as arranca de súbito à sua eternidade simples.
As pedras conhecem essa violência.
Mas não é a corrente elétrica que cinde com toda a sua potência,
mas sim aquele que nas mãos detém essa força:
o operário.


3.
As mãos são a paisagem do coração. Por vezes ficam gretadas
como ravinas, por vaga força revolvidas.
Estas mesmas mãos que o homem só abre
quando repletas de dor
e vê que, graças a ele, outros podem afastar-se tranquilos.
As mãos são paisagem. Quando gretadas,
invade-as a dor com intensidade, livre como uma torrente.
Mas o homem não pensa na dor.
A dor não é, por si mesma, grandeza,
e para dizer a sua verdadeira grandeza não há palavras.


4.
Não são apenas as mãos que lançam o peso do martelo,
nem apenas o tronco que se dilata ou os músculos que o desenham,
mas também o pensamento profundo, no trabalho mergulhado,
que faz rugas na testa
e liga sobre a cabeça ombros e veias em abóbada gótica.
Assim, subitamente, torna-se secção de edifício gótico
que penetra a vertical nascida do pensamento e do olhar;
não é apenas um perfil!
Não é apenas uma forma entre Deus e a pedra
destinada à grandeza e sujeita ao erro!


 II
A inspiração
1.
Por dentro começa o trabalho e no exterior ganha tanto espaço
que logo se apodera das mãos e depois do último alento.
Repara. A tua vontade chega ao fundo do sino da pedra.
Quando o pensamento atingir a certeza,
nessa altura o coração e as mãos, em conjunto, alcançam o veio mais alto.
Uma mão generosa paga o preço
desta vertical, deste pensamento e deste olhar seguros.
A pedra entrega a sua força, o homem amadurece através do trabalho
que traz consigo a inspiração de um bem árduo.
E do trabalho nasce tudo o que cresce no coração e no pensamento,
tudo o que sustenta grandes acontecimentos e multidões.
Que amor este que amadurece ao ritmo dos martelos!
Grupos de crianças transportam-no para o futuro,
cantando: «No coração de nossos pais cumpria-se, sem limites, o trabalho.»


2.
Esta inspiração não acaba nas mãos. Até às medulas da pedra
ela desce através do coração do homem que aí forma medulas isoladas.
E, a partir deste coração, cresce na terra a história das pedras
e no homem cresce o equilíbrio entre a ira e o amor.

Ambos dirigem o homem, nunca nele se esgotarão,
nem hão de cessar na tensão dos seus ombros,
nem no gesto oculto do seu coração;
amor e ira nascem um do outro, completam-se mutuamente
como alavanca que une pensamento e ação num círculo indestrutível.
Assim, vindo de longe, se queres alcançar e entrar no homem e habitá-lo,
tens de unir estas duas forças na sua simplicíssima língua
(e a tua fala não pode fugir às tensões da alavanca
que amor e ira formam).
Então nada te arrebatará do homem, ninguém te afastará dele.




III 
A participação
A luz desta tábua tosca, há pouco do tronco separada,
verte nas tuas mãos a imensidão do trabalho.
E a tensão dessa mão faz parte do Ato
que tudo leva ao interior do homem, aperfeiçoando-o.
O homem de olhos cansados e sobrancelhas cerradas.
As pedras têm arestas aguçadas como navalhas,
a corrente elétrica fustiga as paredes cortando-as como látego invisível,
e o sol, o sol de julho: branco incêndio na pedra.
Pertencerão as minhas mãos à luz que corta em estilhaços
os carris, as picaretas e, lá em cima, as valas?
As minhas mãos pertencem ao coração e o coração nunca amaldiçoa.
(Afasta o coração dos lábios quando eles amaldiçoarem!)
Conheço-vos, boa gente, gente sem modos nem maneiras.
Sei olhar ao coração do homem sem máscaras nem dissimulações.
Há mãos consagradas ao trabalho, há mãos consagradas à cruz.
Lá em cima encontram-se as valas, as picaretas espalhadas nos carris.
Há espaços vazios nas rochas, não te aproximes!
Desfazem-se os pilares cortados pela corrente.
Os jovens buscam um caminho. Ao meu coração
chegam todos os caminhos. Perdoar-me-ão as pedras?
Escuta: e se o mundo se imobilizasse neste equilíbrio das mãos
que tu, a cada explosão do homem e da pedra,
colocas sobre a vala, sempre, a alguns passos daqui…
(Por vezes há uma criança descuidada que para lá corre.)
Mas este equilíbrio que tu e só tu manténs,
parece estar ao mesmo tempo demasiado longe e demasiado perto.
Temos de nos dobrar e, simultaneamente, nos erguer.
(A criança é descuidada e facilmente para lá corre.)
E de novo o silêncio reina entre coração, pedra e árvore.
Todos podem entrar. Quem entrar permanece igual a si próprio.
Quem não entra não participará em todas as coisas da terra,
apesar das aparências.


IV
À memória de um companheiro de trabalho
1.
Não estava só. Os seus músculos tinham raízes na multidão
quando erguia os martelos e palpitavam de energia.
Tudo isso prosseguiu até ele cair por terra a seus pés,
até que a pedra lhe esmagou as fontes
e lhe atingiu um ventrículo do coração.
2.
Levantaram o corpo, avançaram em silenciosa fila.
3.
Ainda dele emanava o trabalho e algum queixume.
Todos tinham blusas cinzentas e botas enlameadas.
Em rigor exibiam tudo aquilo
que entre os homens não deveria acontecer.
4.
O tempo daquele companheiro parou abruptamente. Nos mostradores a corrente era fraca, 
os ponteiros oscilaram e voltaram ao zero.
A pedra branca cravou-se nele e devorou-o
e dominou-o de tal modo que ele ficou de pedra.
5.
Quem rolou a pedra? Quem volta a despertar os pensamentos
nas fontes definitivamente quebradas como estuque?
Em silêncio depuseram-no sobre uma mortalha de carvalho.
Chega, atormentada, a mulher, o filho regressa da escola.
6.
Até onde se derramará agora a sua ira sobre os outros?
Não amadureciam nele o amor e a verdade?
As gerações vindouras dele se servirão,
despojado já da sua essência mais profunda, única e pessoal?
7.
Voltam a carregar pedras. Um vagão está coberto de flores.
A corrente elétrica volta a rasgar a fundo os muros.
Mas o homem leva consigo a estrutura interior do mundo;
quanto mais a ira o satura, tanto mais alto explode o amor.

(João Paulo II, "A pedreira e outros poemas", edição Paulinas; as fotografias foram tiradas nas oficinas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva)







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