(para as cartas de marear, que não desistiram de esperar)
Houve um tempo em que as minhas mãos multiplicavam-se para agarrar todas
as palavras do mundo e mil dedos freneticamente percorriam livros e traziam-mas
à boca, que as engolia, sôfrega, quase sem mastigar. Depois de
percorrerem o infindável tubo digestivo, eram aconchegadas nas múltiplas dobras, estantes dos intestinos. A minha imaginação agrupava-as, casando-as umas com as outras, formando famílias, tribos, comunidades, que me ocupavam o pensamento e não deixavam espaço para a vida que em cada instante floria e eu perdia. Até que comecei a minha cura de desintoxicação, e uma
a uma foi obrigada a sair pelos orifícios da pele, em estado gasoso, líquido ou sólido, consoante o grau de teimosia.
E senti, no ventre vazio, o silêncio do mundo. A imaginação deixara de
funcionar por falta de combustível. Libertara-me da(s) história(s). Era
finalmente livre e finalmente via, ouvia e tocava no que existia, sem necessidade de outra companhia.
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