setembro 02, 2012





língua
caminho de vida


caminhava logo atrás quando o vi, disfarçadamente, deitar letras para o chão, umas atrás das outras, como se semeasse; apanhei-as todas e aproximei-me mostrando-lhas, deitadas sobre a palma da mão; perguntei se eram dele; disse que não, rodando timidamente a cabeça, para um lado e para o outro. Trouxe-as para casa e coloquei-as desalinhadas sobre a cómoda do quarto. Olhei para elas durante algum tempo sem descortinar o enigma, e adormeci. Nessa noite, sonhei que um nome me perseguia e me pedia desesperadamente para o guardar. Quando acordei fui confirmar se era ele; e as letras encaixavam todas umas nas outras. Guardei-o na carteira, embrulhado num lenço antigo de algodão. Passou a andar sempre comigo, para lho devolver, se o voltasse a encontrar. A partir desse dia, de manhã, antes de sair para trabalhar e à noite, antes de me deitar, cuidava dele; passava-lhe a mão para lhe retirar o pó; descobria-lhe o sentido, a origem, a raiz arquetípica, a matriz; dizia-o em voz alta, várias vezes seguidas, como se repetisse um mantra, deixando reverberar em mim a energia de cada sílaba, procurando entrar em contacto com essa fonte única e desconhecida guardada no interior de cada nome; outras vezes, brincava, inventando acrósticos, imagens que o representassem ocultando; outras, ainda, trocava-lhe a ordem das letras, descobrindo-lhe nomes no interior do nome e com eles compondo um poema. Quando estava feliz, lançava-o ao ar e deixava que as letras caissem soltas no chão, formando desenhos, livres. E assim se passavam os nossos dias. Durante todo esse tempo nunca nos cruzámos. Até que um dia, quando regressava a casa, pareceu-me vê-lo, ao longe, sentado num banco do jardim do bairro. Aproximei-me, percebi que não me enganara e perguntei-lhe se me podia sentar; antes que ele respondesse, retirei da carteira o pano, abri-o e mostrei-lhe. O nome. Disse-lhe que era seu; coloquei-lhe as letras na mão e pedi que repetisse, pausadamente, cada uma das sílabas. Parecia que era a primeira vez que o dizia e se reconhecia. E a expressão no seu rosto era de espanto, como se tivesse reencontrado alguém que julgara morto. E ressuscitado.
Ainda hoje, quando o encontro no jardim, a primeira coisa que lhe digo é o nome, vincando bem o som de cada letra. E ele agradece, sorrindo, convidando-me a sentar. Através do nome percorremos o caminho mais profundo dentro de cada um e reconhecemos a morada, conjunta. Decifrámos o enigma. A língua una, indivisível. Via comunicante. Caminho de vida.
E nada mais houve a dizer. Só estar. 


-Quid est veritas? 
- Est vir qui adest 





2 comentários:

josé luís disse...

uma palavra vale mil imagens.

(e nada mais houve a dizer)

mp disse...

... só estar... ;))

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