NUNCA TE ESQUEÇAS DISSO
Era de manhã muito cedo. Tinham combinado encontrarem-se por volta das oito,
no café Aragem, na outra margem. Iriam comer qualquer coisa antes da viagem.
A leitora tinha-lhe dito em tempos. Gostava que um dia me levasses a conhecer
a tua Aldeia. Um dia, quando puderes. O escritor, que antes disso tinha-lhe
desejado, em jeito de mensagem de Natal e Novo Ano, que todos os seus sonhos se
viessem a realizar, não teve coragem de a contrariar e. Disse-lhe que sim. Que a
levaria a visitar a sua aldeia. Bastava ela marcar o dia, a hora.
Quando lá chegou ele ainda não estava. Ficou de pé a olhar
a vitrine dos bolos. Indecisa. Um Jesuíta. Ele acabara de chegar. Passou por
ela como um furacão, a olhar para lugar nenhum. Mais tarde ela indagou-se que
olhar seria aquele? Talvez o de alguém que não podendo perder-se naquilo que
olha prefere ocultar a visão. Guardando-a ou resguardando-a. Gosto de baralhar
a língua. Ele sentou-se. Ela hesitava. Parecia que não procurava ninguém e isso
entristeceu-a, mas também podia ser que estivesse à espera de ser procurado.
Afinal o caso era o de uma leitora que julgara encontrar o escritor nas
entrelinhas dos seus textos. Não vamos virar o caso do avesso.
Ela por fim voltou-se e foi ao seu encontro. Falaram-se
desajeitadamente. Com a falta de jeito de todos os primeiros encontros. As mãos
tremiam-lhe ainda, mas iria passar. O corpo nunca a deixara mentir. Qualquer
alteração do seu estado emocional passava sempre por ele, começava e acabava.
Numa diarreia.
Atrás de uma palavra vinha outra, atrás dessa uma outra e
com elas foram passando os segundos, os minutos, os quartos de hora, até que a chegada do silêncio lembrou-os da viagem que tinham pela frente. Num impulso a dois,
pagaram e saíram.
Tinham combinado que iriam no carro dela. Ele, ao que
parece, gostava de ser conduzido. Ela, ao que parece, gostava de conduzir, o
seu carro. Era estranho ter ao seu lado aquele estranho que só o não era,
julgava ela, pelas entrelinhas. Era um homem grande. Comprido. Daqueles que ocupam
todo o lugar reservado para as pernas, até serem obrigados a dobrá-las de
encontro ao tablier. A
janela completamente aberta, o cotovelo do braço direito de fora, mais deitado
do que sentado, no banco. As mãos enormes, os dedos finos. Ela tentava encontrá-las
pelo canto do olho. Tinha uma curiosidade enorme por aqueles dois membros. Os
seus instrumentos de trabalho. Passaram a primeira portagem, a segunda,
encontravam-se em campo aberto, nem vestígios de cidade. Erva, renques de
árvores, odores e bafos de ar quente entravam-lhes pela pele dentro. Ela
acelerava como que para mergulhar numa outra dimensão. Rasgar as malhas do
tempo e do espaço. RAAAAAACCCCCCCCCC. Do outro lado lá estava ela. A Aldeia.
Branca com risca azul, a querer informar a localização geográfica. Na encosta de um monte, rodeada de oliveiras
e recortes de campos arados, a Igreja no topo e, como um manto de noiva, o
casario por ali abaixo de encontro aos muros caiados e à estrada. A que nos leva
até ela e a que nos trás de volta. Para o nativo todos os caminhos vão dar à
sua Aldeia, ali chegam e dali partem para outros lugares. Não se admite a
passagem. E acho muito bem. Por isso os muros, para nem sequer se ver quem
passa e guardar quem fica. Como num ninho.
Levou-a a ver a casa, a escola, a rua, que para um rapaz é
mais a sua casa do que a outra. Via-se que tinha uma enorme admiração por ela.
Percorreram-na a pé. Descalços, para lhe
sentir melhor o coração. Falava a todas as pessoas com quem se cruzava, bom dia
Dona Amélia, bom dia Sr. João. Estás tão alto cachopo. Os ares do campo
fizeram-te bem, nunca te esqueças disso. Tinham-no visto não há muito tempo,
mas diziam-lhe sempre as mesmas coisas. Para não esquecer aquilo que é realmente importante. Cachopo. Terra. Aldeia.
De seguida, dirigiram-se à barragem, ainda descalços. O sol
ardia-lhes nos olhos de propósito não escurecidos. Procuraram uma sombra onde coubessem dois. Sentaram-se. Ele abriu o seu caderno de notas. Ela abriu o seu
bloco de desenho e enquanto ele, distraído, preenchia linhas, ela
desenhava o que via. As pontas dos dedos, as unhas rentes, dedo a dedo, mão a
mão. E dentro de si as palavras que ele escrevia floriam como num verso de
Daniel Faria.
Ao (co)l(h)eres este texto levas uma dessas flores, contigo,
para casa. Só tens que a regar. Nunca te esqueças disso.
(texto escrito há uns anos e publicado num dos números da revista V-Ludo)
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